É natal, o ano está terminando e provavelmente não terá mais pauta da Secretaria de Cultura para apresentarmos nosso espetáculo infantil FÁBULAS. E provavelmente não haverá outras reprises. Quem perdeu, perdeu mesmo. A peça foi elogiada pelo júri no festival de teatro do ano passado e nos rendeu indicações a prêmios (figurino, ator e atriz).
Foi um ano bom para o Laboratório de Investigação Teatral, que parece ter um destino parecido com o do Fábulas – nada está certo. Mas 2008 chega com surpresas, preparadas pelo grupo ArtBrasil e Baião de Dois. Deixo aqui, em homenagem, um conto já publicado anteriormente no outro endereço. Um bom natal!
Cortem a cauda do escorpião!
A dona Sapa tinha a mania de cantarolar por além do brejo, e, por causa disso, era famosa nas redondezas. Também era famosa por sua beleza. Dotada de duas longuíssimas pernas que lhe permitiam deslocar-se mais de três metros em um único passo, dona Sapa recebia aplausos e assobios de quem quer que estivesse por perto. Mas não somente aplausos e assobios. Naquele dia mesmo, dona Sapa usava no pescoço um colar de conchas do mar colhidas pelo senhor Sapo-Boi.
Dona Sapa admirava o colar em um lugar cuja distância do brejo era maior que a permitida pela mãe Sapa. Fazer o quê? Dona Sapa tinha um problema com as pernas. Pulava tanto que perdia a noção do quão longe se apartava. Esse lugar era próximo da orla de um riacho.
Próximo da orla de um riacho, o senhor Escorpião procurava ajuda. Estava aflito por causa de uma tempestade que o afastou de sua moradia e dos outros escorpiões há três dias. Graças à sua enorme e brilhante cauda, que tinha vida própria e lhe concedia um poder jamais dado a qualquer animal minúsculo e inútil das redondezas, o Escorpião ainda se mantinha vivo. Pobre e esfaimado, o animal perambulava entre as árvores e formigueiros à procura de um animal caridoso e disposto a ajudá-lo a atravessar o rio, enquanto a cauda roubava alimentos e utensílios úteis contra a chuva e o vento.
Gripado, o Escorpião tinha decidido descansar perto do toco de uma árvore quando sentiu um puxão vindo de trás. A cauda parecia aflita com algo, e tinha razão. Ali perto, a enorme Sapa coaxava com notável beleza. Repentinamente, o senhor Escorpião pôs-se de pé e deixou que seus olhos admirassem a canção e a fisionomia do anfíbio. Depois, olhou para o chão. Queria dar algo de presente. Viu uma tulipa.
O senhor Escorpião respirou profundamente, segurou a flor na mão e fez uma cara de censura à afoita cauda. Com um gesto encantador, ele levou o corpo ao chão, a cintura em pé, o braço esquerdo no peito.
— Com licença, formosa dama. Bom dia! Essa história já existe e muitos a conhecem. Foi contada por La Fontaine há mais de trezentos anos. Também é de conhecimento comum que, como característica de qualquer outra fábula, o final da história não é sempre o esperado pelas crianças. Isto é, a dona Sapa vai morrer. Quebrar essa peculiaridade da fábula seria descaracterizá-la e desrespeitar a figura de La Fontaine. Então, não há chance. A Sapa será picada ao levar o senhor Escorpião nas costas. E sucumbirá rio abaixo.
O intuito deste texto é criar possíveis argumentos que salvariam dona Sapa. O primeiro deles trata-se de uma campanha com o fito de ajudar escorpiões desempregados. Uma rã garantiu que a pobreza generalizada da comunidade dos escorpiões era o motivo principal da difusão de matanças no brejo. Graças a essa campanha, o senhor Escorpião e sua família recebem periodicamente uma porção de baratas francesinhas. Mas isso não contribuiu para que dona Sapa fosse salva naquele dia depois da tormenta, afinal o senhor Escorpião não sentia fome, tampouco sua cauda.
Havia ainda um lugar nos arredores do brejo promovendo o adestramento de escorpiões. Quando a empresa expandiu-se para depois do rio, a família do senhor Escorpião foi a primeira a ser atendida. A instrução baseava-se em uma série de atividades consistidas em alertar os escorpiões sobre as conseqüências da criminalidade. Ora, ninguém poderia acusar o senhor Escorpião de criminoso. Suas intenções ao presentear a dona Sapa com a tulipa eram as melhores possíveis. Que tolo preste a voltar para casa depois de uma terrível tempestade seria capaz de afundar-se em um rio?
O problema era a maldita cauda. Ela pica só pelo prazer de picar e porque é a única coisa que sabe fazer com dois dedões pontudos e afiados. Poucos no brejo tinham essa percepção. E esses saíram às ruas em passeata com cartazes que diziam: “Cortem a cauda do escorpião”.
Ao atravessar a pior parte do rio, o senhor Escorpião agarrou-se ao pescoço de dona Sapa com medo de cair no rio. Ao mesmo tempo, tentava controlar a ansiosa e aflita cauda. “Agora não, por favor”, pensou o senhor Escorpião. Mas não adiantava. Aquilo era maior que a vontade desesperadora do pequeno animal.
De repente os olhos do senhor Escorpião ficaram vermelhos. Sua face malvada olhou para a careca de dona Sapa, levantou a sua cauda e…
— Mas senhor Escorpião, por quê?
— Desculpe, bela dama, mas faz parte da minha natureza.