Arquivo da categoria ‘Contos’

Querida página

Publicado: 3 junho 2008 em Contos

Minha querida página,


Sei que te devo um milhão de desculpas e nenhuma justificativa será suficiente para eu ter seu perdão. Ainda assim, eu arrisco uma tentativa. Uma tentativa muito rápida, pois estou no horário de trabalho, que é sagrado e me garante uma bolsa de R$400,00.


Existe um poder coercitivo sobre esse glóbulo do qual fazemos parte que me obriga a abrir mão desse tempinho que dedico a você. Era esse o poder de coerção de que pretendia me livrar ao praticar o jornalismo. Se fosse de minha vontade, escrevia o que bem vinha em minha cabeça no tempo necessário que a inspiração pede, mas receio que já não seja possível.


Já há tempos penso em meu romance e nas linhas invisíveis da minha dramaturgia e lamento o peso na consciência por deixá-la assim, vazia, esburacada, sozinha e angustiada. Mas prometo, assim que possível, elaborarei um conto sobre uma mulher que atravessa uma rua. Já está tudo na cabeça. Tudinho. Surgiu logo agora, quando atravessei a Boulevard para ir ao banco depositar um cheque.


Por enquanto tenho essas matérias, esses serviços, alguns telefonemas, umas colagens aqui de jornal – que ainda não terminei, mas falta pouco –, e a leitura de um livro acadêmico (Kafka quer me matar, uma vez que havia reservado o mês de maio para releitura do Processo).


Assim como Kafka, sinto que a cada dia vou morrendo, e começo a me preocupar pois sou uma pessoa ainda muito jovem. Mas, retomando, assim como Kafka, já tenho pesadelos com um facão que arranca um pedaço de mim a cada dia da minha vida. Se quer um consolo, página, é você meu ócio – e o teatro enquanto for gostoso.


Mas necessito despedir-me apesar do serviço terminado, pois ainda faltam 5 minutos para as 18h. E preciso pensar nos exercícios da faculdade e nas tarefas do estágio a fim de aguçar minha inteligência, aumentar meu coeficiente e me preparar para o mercado de trabalho. Dizer que estou morrendo é um exagero, mas sinto que, a cada dia, estou ficando um pouco mais burro. Socorro, página!


Até mais ver,

Fui.

Cortem a cauda do escorpião!

Publicado: 25 dezembro 2007 em Contos, Teatro

É natal, o ano está terminando e provavelmente não terá mais pauta da Secretaria de Cultura para apresentarmos nosso espetáculo infantil FÁBULAS. E provavelmente não haverá outras reprises. Quem perdeu, perdeu mesmo. A peça foi elogiada pelo júri no festival de teatro do ano passado e nos rendeu indicações a prêmios (figurino, ator e atriz).

Foi um ano bom para o Laboratório de Investigação Teatral, que parece ter um destino parecido com o do Fábulas – nada está certo. Mas 2008 chega com surpresas, preparadas pelo grupo ArtBrasil e Baião de Dois. Deixo aqui, em homenagem, um conto já publicado anteriormente no outro endereço. Um bom natal!

fabulas1.jpg

Cortem a cauda do escorpião!

A dona Sapa tinha a mania de cantarolar por além do brejo, e, por causa disso, era famosa nas redondezas. Também era famosa por sua beleza. Dotada de duas longuíssimas pernas que lhe permitiam deslocar-se mais de três metros em um único passo, dona Sapa recebia aplausos e assobios de quem quer que estivesse por perto. Mas não somente aplausos e assobios. Naquele dia mesmo, dona Sapa usava no pescoço um colar de conchas do mar colhidas pelo senhor Sapo-Boi.

Dona Sapa admirava o colar em um lugar cuja distância do brejo era maior que a permitida pela mãe Sapa. Fazer o quê? Dona Sapa tinha um problema com as pernas. Pulava tanto que perdia a noção do quão longe se apartava. Esse lugar era próximo da orla de um riacho.

Próximo da orla de um riacho, o senhor Escorpião procurava ajuda. Estava aflito por causa de uma tempestade que o afastou de sua moradia e dos outros escorpiões há três dias. Graças à sua enorme e brilhante cauda, que tinha vida própria e lhe concedia um poder jamais dado a qualquer animal minúsculo e inútil das redondezas, o Escorpião ainda se mantinha vivo. Pobre e esfaimado, o animal perambulava entre as árvores e formigueiros à procura de um animal caridoso e disposto a ajudá-lo a atravessar o rio, enquanto a cauda roubava alimentos e utensílios úteis contra a chuva e o vento.

Gripado, o Escorpião tinha decidido descansar perto do toco de uma árvore quando sentiu um puxão vindo de trás. A cauda parecia aflita com algo, e tinha razão. Ali perto, a enorme Sapa coaxava com notável beleza. Repentinamente, o senhor Escorpião pôs-se de pé e deixou que seus olhos admirassem a canção e a fisionomia do anfíbio. Depois, olhou para o chão. Queria dar algo de presente. Viu uma tulipa.

O senhor Escorpião respirou profundamente, segurou a flor na mão e fez uma cara de censura à afoita cauda. Com um gesto encantador, ele levou o corpo ao chão, a cintura em pé, o braço esquerdo no peito.

— Com licença, formosa dama. Bom dia! Essa história já existe e muitos a conhecem. Foi contada por La Fontaine há mais de trezentos anos. Também é de conhecimento comum que, como característica de qualquer outra fábula, o final da história não é sempre o esperado pelas crianças. Isto é, a dona Sapa vai morrer. Quebrar essa peculiaridade da fábula seria descaracterizá-la e desrespeitar a figura de La Fontaine. Então, não há chance. A Sapa será picada ao levar o senhor Escorpião nas costas. E sucumbirá rio abaixo.

O intuito deste texto é criar possíveis argumentos que salvariam dona Sapa. O primeiro deles trata-se de uma campanha com o fito de ajudar escorpiões desempregados. Uma rã garantiu que a pobreza generalizada da comunidade dos escorpiões era o motivo principal da difusão de matanças no brejo. Graças a essa campanha, o senhor Escorpião e sua família recebem periodicamente uma porção de baratas francesinhas. Mas isso não contribuiu para que dona Sapa fosse salva naquele dia depois da tormenta, afinal o senhor Escorpião não sentia fome, tampouco sua cauda.

Havia ainda um lugar nos arredores do brejo promovendo o adestramento de escorpiões. Quando a empresa expandiu-se para depois do rio, a família do senhor Escorpião foi a primeira a ser atendida. A instrução baseava-se em uma série de atividades consistidas em alertar os escorpiões sobre as conseqüências da criminalidade. Ora, ninguém poderia acusar o senhor Escorpião de criminoso. Suas intenções ao presentear a dona Sapa com a tulipa eram as melhores possíveis. Que tolo preste a voltar para casa depois de uma terrível tempestade seria capaz de afundar-se em um rio?

O problema era a maldita cauda. Ela pica só pelo prazer de picar e porque é a única coisa que sabe fazer com dois dedões pontudos e afiados. Poucos no brejo tinham essa percepção. E esses saíram às ruas em passeata com cartazes que diziam: “Cortem a cauda do escorpião”.

Ao atravessar a pior parte do rio, o senhor Escorpião agarrou-se ao pescoço de dona Sapa com medo de cair no rio. Ao mesmo tempo, tentava controlar a ansiosa e aflita cauda. “Agora não, por favor”, pensou o senhor Escorpião. Mas não adiantava. Aquilo era maior que a vontade desesperadora do pequeno animal.

De repente os olhos do senhor Escorpião ficaram vermelhos. Sua face malvada olhou para a careca de dona Sapa, levantou a sua cauda e…

— Mas senhor Escorpião, por quê?
— Desculpe, bela dama, mas faz parte da minha natureza.

O Calouro Mariposa

Publicado: 21 novembro 2007 em Contos

 

Renato estava dormindo antes de cair da árvore e ver-se transformado em uma horrenda mariposa. Seu corpo era tão belo quanto o de uma borboleta, só não havia apreciado suas asas velhas e enrugadas. E por uma lastimosa sorte, eram as asas que auferiam maior visibilidade. 

Quando se encontrou com as outras mariposas, sentiu que deveria ter aproveitado mais a vida enquanto imaturo. Engraçado ele ter aquela visão pois, uma vez larva, ele invejava com intemperança o voar das aves e dos insetos. Renato parecia não ter noção de que aquele momento era o mais aguardado em toda a sua vida insignificante. Insignificante porque antes ele não tinha tanto a fazer sem as amplas possibilidades proporcionadas por aquelas asas. 

Escolhi relatar a síntese da história de uma mariposa na falta de melhor inventividade para misturar temas como maturidade e ingresso à universidade. Quis fazê-lo em um único texto porque não há feitio que torne longa a distância entre calouro e maturidade. Usar o inseto como ilustração me surgiu por causa da leitura de A Metamorfose. Não sei ao certo qual era a intenção de Kafka ao escrever história tão bizarra, mas me imaginei quando calouro no momento em que Gregor Samsa acordou transformado em um gigantesco inseto. 

Os hábitos alimentares mudaram, assim como as amizades, nossas trajetórias, entre outras coisas. Tudo isso após o ato de escolha da profissão, o primeiro da vida adulta. E como seria diferente se a escolha fosse outra – ou se permitisse que outros a fizessem. O vislumbre que ainda está guardado em minha memória emotiva desde o primeiro dia de calouro confunde-se com o medo de começar a tomar decisões. Nossas ações não são mais as mesmas quando compreendemos que, agora, somos os únicos responsáveis pelo nosso bem-estar. 

O que nos diferencia de Renato – e nos aproxima de Gregor – é o fato de que muitos demoram a perceber a metamorfose – ou talvez ainda nem a tenham sofrido. Nas salas da universidade, ainda esperam a solução dos problemas acadêmicos surgir como um fruto na árvore. 

Graças a essa discussão, entendi porque muitos não conseguem adaptar-se ao meio acadêmico: é imaturidade. Procurem essas pessoas e descubram como levam suas vidas e descobrirão que não estou mentindo. A universidade deve ser vista como exercício. O vislumbre dos calouros logo será aniquilado se a universidade for compreendida de forma inequívoca, em uma unidade academicista. 

Se voltar a historieta da mariposa para explicar melhor minha tese, diria que Renato logo descobriria que o voar das aves e dos insetos é um trabalho monótono, árduo e enfadonho. Mas é somente por meio dele que Renato descobriria os caminhos adequados para o seu bem-estar. E no final, vai adorar ter a capacidade de voar e ser invejado pelos lagartos.